- Tá na altura de ir uns dias prá Afife, diz ele
- Chove tanto! E está lá muito mais frio do que aqui. Antes de teres feito aquelas modernices, ainda havia as lareiras feitas pelos ingleses. Eles é que sabiam, diz ela.
Mas o J. nunca foi homem de hesitações. E, com mais 2 ou 3 gatos irrequietos, entram no carro dispostos a percorrer 410 Km durante 4 horas, como sempre.
Afife é uma antiga freguesia localizada à beira mar, a cerca de dez quilómetros de Viana do Castelo. Os vários castros dispersos pelo seu interior, são testemunho da presença do Homem desde as mais remotas épocas. O repovoamento ter-se-á feito depois de 868 e antes de 890.
"Para
quem passa, Afife não parece mais que uma estância de veraneio. Um reduto de
beleza pura onde alguns ricaços construíram casas de férias, certos artistas
bem-sucedidos e velhas famílias inglesas do vinho do Porto procuram refúgio e
recato.(…) Entre
o século XIX e primeira metade do século XX, praticamente só as mulheres
ficavam em Afife, para trabalhar na agricultura. A maioria dos homens
dedicava-se ao estuque ou artes afins e vivia fora da sua terra. Por todo o
lado, eram prestigiados e respeitados, vistos não como artífices, mas como
intelectuais. Apresentavam-se nas obras de sobrecasaca e chapéu alto, ou de
fraque, colete branco, calça de fantasia e chapéu de coco, segundo a monografia
de Avelino Meira, ele próprio filho e neto de estucadores (…). É um lugar avesso à ostentação, de carácter altivo e elitista, como, talvez por determinismo da paisagem, aliás sempre foi." Paulo Moura, Público
- Tá? É o M.?
- …
- Tivemos um acidente. Bati noutro carro ou o outro bateu no meu. Nós estamos mal, mas vivos. Eu vou prá Urgência e o carro vai prá sucata
- …
- Tou mais preocupado porque perdi os dentes. E não digas que não vejo, porque não é verdade.
Ao sair do Hospital, insiste no aluguer de um carro. Vira e revira todos os bolsos para procurar a carta de condução. Porem, como não a encontra ( o irmão tinha-la escondido), descontente mas não rendido, pergunta pela A., pelos gatos e chama um taxi.
- Quando tiver mais tempo, vou ver se compro outro carrinho.
Personagens:
J., 88 anos, quase cego, com significativos sintomas de Alzheimer
A., 92 anos, com demência senil preocupante
Vivem sozinhos, numa casa sem elevador, cheia de móveis, de eletrodomésticos, vários outros aparelhos eléctricos e livros.
Não têm filhos.
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