Falar da década de 60 sem referir Vasco Manuel Veiga Morgado,
aquele “que fazia as coisas acontecer", nas palavras de Joana Stichini
Vilela, seria, no mínimo, desonesto; ele foi fundamental na construção cultural
de Lisboa.
Como actor e grande empresário teatral do Parque Mayer e
do Monumental, "Vasco Morgado Apresenta" enchia os palcos da cidade.
Contemporâneo de uma geração idealista, os alfacinhas
sentiam-se a viver numa “capital europeia”. O Saldanha simbolizava a vida
nocturna e a boémia jovem.
Segundo registos históricos, produziu mais de 400
espectáculos dos mais variados tipos, desde cinema, operetas, dramas, comédias,
revistas e muitos outros.
Passou a dedicar mais atenção ao teatro, como empresário, depois de ter casado com Laura Alves.
Conheci-o desde o início da minha vinda para a capital,
através de familiares moradores na Avenida 5 de Outubro, logo por trás do
saudoso Monumental.
Havia um gigantesco foyer no interior com mármore,
dourados e lustres
Tive o privilégio de
assistir, por convite, a todas as ante-estreias dos filmes e reprises como (Ben-Hur",
"My Fair Lady", "Canhões de Navarone", "A Queda do
Império Romano" e tantos mais…) com deliciosos convívios nos
intervalos (inicio da sessão com “Assim vai o mundo…”, primeiro intervalo,
inicio do filme, segundo intervalo) e de desfrutar de todos os inesquecíveis
réveillons.
Galã, optimista, de olhar penetrante e sorriso fácil, era o “ponto de partida” para todos os eventos relacionados com personalidades nacionais e estrangeiras.
Trouxe Johnny Hallyday, que pôs ao rubro a multidão de
jovens "insolentes" no Cine-Teatro Monumental, Sandie Shaw, os
Animals, Ella Fitzgerald, Gilbert Bécaud, Charles Aznavour, Sylvie Vartan, os
Searchers, Rita Pavone.
Destaque, também, para "Concurso IÉ-IÉ", o Amadeu, V. Morgado's, o Convés, o
Café Monumental, o Porão da Nau, Os Tubarões…
O café Monte Carlo (hoje é uma Zara!) era foco das
tertúlias literárias, dos surrealistas, neorrealistas, actores e políticos de
todos os quadrantes.
Em 1964, empresário do Avenida (destruído por um incêndio em 1967), emprestou o teatro à Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro, desalojada
do Teatro Nacional D. Maria II.
A ele estão associadas algumas das mais célebres e incomparáveis individualidades e espectáculos do teatro de revista nacional:
- António Maria da Silva, um dos actores portugueses mais importantes do século XX, o cómico que fez uma carreira
de seis décadas no teatro, cinema e televisão.
Lisboa à Noite (1963), Aqui há Fantasmas (1966), Sarilhos de Fraldas (1967), a sua última
aparição, com António Calvário e Madalena Iglésias.
- Paulo Renato (Renato Ramos Paulino), o galã do momento, é ao serviço de Vasco Morgado que obtém os êxitos mais notáveis, sobretudo no reportório de Laura Alves; criou alguns personagens muito interessantes em filmes como Verdes Anos (1963), rodado numa zona mítica do novo cinema português, em torno do Café-Restaurante Vává, no rés-de-chão do prédio onde vivia o realizador, Paulo Rocha.
- Francisco Carlos Lopes Ribeiro (Ribeirinho), o grande
actor popular, cineasta e encenador, irmão mais novo do também cineasta António
Lopes Ribeiro, que revelou actores como
Ruy de Carvalho, Armando Cortez, Manuela Maria, Francisco Nicholson, Carlos
Wallenstein, Nicolau Breyner.
Com O Impostor Geral, versão particular
de «O inspector-geral», de Gogol, abriu o Teatro Villaret de Raul Solnado, em
1965..
- Henrique Viana, actor. Integrou a Empresa de Teatros Vasco Morgado em 1962,estreando-se na alta comédia em Loucuras de Papá e de Mamã no Teatro Avenida e no teatro de revista em 1967, em Sete Colinas
O actor popularizou a figura do Calinas, o alfacinha chico-esperto.
- "A vida é uma mochila que vamos enchendo com o bem e o mal que fazemos".
- João Henrique Pereira Villaret, actor e apresentador de
TV, declamador, Membro de Os Comediantes de Lisboa – companhias de Vasco
Morgado.
Fez de tudo - apesar de ter morrido em
61 aos 47 anos - com subtileza, espiritualidade, perspicácia, inteligência.
“Morreu o maior actor português"; Na noite anterior, "sorridente, tinha recitado de cor um poema de Pessoa”. DN
“Morreu o maior actor português"; Na noite anterior, "sorridente, tinha recitado de cor um poema de Pessoa”. DN
"Recitei-os como eu os sentia e, no fim, o mestre, que era professor conceituado da casa, olhou-me com severidade e disse:
- O menino tem boa voz, mas os versos não se dizem assim, mas como se fossem prosa.
E eu, muito pespinete, nervoso e irritado, respondi:
- Então porque é que são versos? E o mestre:
- O menino é insolente mas inteligente, está admitido."
(Nas provas de admissão para o Conservatório, quando recitou dois vilancetes e um soneto de Camões)
E como não posso enumerar a imensa série de talentos
desta década (muitos deles já com sucesso em décadas anteriores), relacionados com Vasco Morgado, vou destacar dois prodígios: Laura Alves e Raúl Solnado
Raul Augusto Almeida
Solnado, um dos maiores humoristas portugueses, actor, apresentador de
televisão - "Lá Em Casa Tudo Bem” -, productor e roteirista, define-se como
“um homem que nasceu no dia da mãe, nove meses depois do dia do pai".
“A morte não me
assusta nada, mas tenho pena de morrer. Viver é uma coisa tão boa!" “Façam o favor de ser felizes!“
Um pouco do genuíno Raúl Solnado, na primeira pessoa (extratos da entrevista “Podiochamá-lo?”):
- "Bem, começo com o Vasco Morgado, praticamente a fazer figuração. Foi o António Silva que me achou piada. Ele era uma pessoa muito tímida mas gostava de mim. Então, eu tinha que lhe dizer uma frase ou duas, não me recordo, depois vinha-me embora e ele começava a sua rábula. Ele começou a dar-me corda, a atrapalhar-me e eu respondia sempre. Às tantas começou a haver gente nos bastidores, técnicos e actores, a ver o que o puto diz ao António Silva. Isto em duas sessões e eu sempre me ia safando! Quando aquilo terminou, havia um papel qualquer numa comédia que se ia fazer e o Vasco Morgado discutia com encenador quem é que ia fazer aquele papel, disse: “isso faz o miúdo que respondia ao António Silva”. Nem o meu nome sabia. Deu-me um papel razoável e estive com a Laura Alves, o que foi uma grande escola. No fundo, naquele tempo o que era bom é que havia grandes actores de peso com quem a gente aprendia” - Vasco Santana, João Villaret, António Silva, Laura Alves.
- É portanto no Bota a
Baixo que é a revelação?
-"Sim. Para o sistema interno, no meio teatral fiquei com algum
prestígio, pela minha idade e pela minha experiência, ou seja: começaram a
contar comigo. Isso foi muito importante para mim, porque quando voltei para o
Vasco Morgado já vinha noutras condições.”
- Depois
da guerra vieram outras rábulas...
Desapareceu há muito pouco tempo (2009).
Como a maioria dos portugueses, penso que fará sempre parte da nossa vida inteira e que será o melhor "cartão-de-visita” de Portugal.
Laura Alves Magno, a grande
Laura Alves, brilhante e perspicaz na arte de representar revista, opereta,
comédia e drama, em espectáculos despidos de preconceitos.
Casada com Vasco
Morgado, lembro-me de a ter visto em Criada
Para Todo o Serviço, Meu Amor é Traiçoeiro (1962), O amansar da fera, A
idiota (1964), A Rapariga do Apartamento, O Comprador de Horas (1965), A
Mulher do Roupão (1966), A Promessa, A Flor do Cacto (1967) sempre cheia de
entusiasmo, gentil, de olhos a rir, enérgica a falar, a andar, a gesticular.
Havia filas enormes nas bilheteiras para a ver representar, durante meses, anos a fio.
Apesar de espalhar simpatia, era reservada quanto à sua vida familiar.
Quando Vasco Morgado esteve internado no Hospital de Santa Maria devido a doença prolongada, visitava-o no intervalo das sessões, com o traje que vestia no palco. "Corria" para o quarto e a "correr" saía.
Trabalhou muito, durante muitos anos no Teatro Monumental. Após a demolição, ia sentar-se com frequência junto aos escombros, dizem.
Foi a minha artista preferida.
- Como era a Laura
Alves? – Perguntaram a Solnado.
-“ Era uma pessoa com uma força louca, um puro vaso comunicante. Era uma grande artista, fazia comédia e drama com uma facilidade enorme. O seu talento foi-se desbaratando porque o repertório que lhe foi dando… Bem, ela também não exigia porque era casada com o empresário, por isso nunca teve acesso. Ela tinha que apelar a um público mais popular que lhe esgotasse as sessões”
-“ Era uma pessoa com uma força louca, um puro vaso comunicante. Era uma grande artista, fazia comédia e drama com uma facilidade enorme. O seu talento foi-se desbaratando porque o repertório que lhe foi dando… Bem, ela também não exigia porque era casada com o empresário, por isso nunca teve acesso. Ela tinha que apelar a um público mais popular que lhe esgotasse as sessões”
"Autorretrato"
- Tem recordações da
sua infância?
- Cantava na rua. Tinha
uma voz muito bonita e toda a gente ficava a olhar para mim.
- Porque trocou a
canção pelo teatro?
- Havia um palco na
Escola Industrial. O professor Lucena descobriu-me o jeito, levou-me ao Alves
da Cunha e agradei.
A aptidão para o
teatro não foi uma vocação. Foi uma necessidade. Éramos sete irmãos… mas tenho
vivido o teatro com muita seriedade.
Gostava de ter sido
química analista ou médica
Um dia, no Verão,
conheci o Vasco Morgado num bailarico da Feira Popular e perguntou-me se queria
ir para a ilha dele. Eu fui mas ficámos de namoro pegado, casámos e tive o meu
filho.
- Porque falhou o seu casamento?
- Ele não me dava assistência. As raparigas metiam-se com ele. Era o trampolim.
- Era o amor da minha vida. Só me divorciei ao fim de 20 anos. Ele nem queria acreditar. Quando o advogado lhe disse que já estava divorciado, teve um ataque de choro; mas, mesmo em casas separadas, cuidei sempre dele.
- A Laura parecia uma espécie de choque para as bilheteiras. Admite que ele tenha explorado o seu talento em termos comerciais?
- Admito e achei bem porque ele era o meu marido e tínhamos um filho
- Entendeu sempre o teatro como um acto de inteligência?
- Sim, as coisas devem ser feitas como deve ser, respeitando os bons encenadores (Alves da Cunha, Amélia Rey Colaço, Palmira Bastos, o Ribeirinho…)
- É uma pessoa dramática.
- Nasci assim. Sou muito triste. Quando ia na rua, a minha mãe ralhava-me porque punha os olhos no chão e pronto…
Sou muito estranha; ou tudo ou nada. Sou igual a mim própria
O meu tetravô era
chinês. Tenho os olhos redondinhos e alguns traços do rosto têm alguma marca
chinesa.
- Pensa que o Vasco
Morgado foi um bom gestor?
- Penso que não; o meu
filho é que é um bom administrador.
- Quanto ganha
actualmente?
- Trinta contos (150
euros).
- Está muito presa às recordações
da sua casa?
- Sou muito sentimental.
Há anos, um violinista ia tocar para a minha rua e as lágrimas caiam-me.
Um segundo casamento
como refúgio… Mas de repente fiquei sozinha outra vez.
- O projecto de
demolição do Monumental, abateu-a psicologicamente?
- Mas a vida não para…
- Há muitos rapazes e raparigas que estão a angariar fundos para que me seja feita uma festa de homenagem nas minhas bodas de ouro no teatro.
- É uma pessoa um bocadinho complicada. Verdade ou mentira?
- Sou. Gostava de saber de tudo. Tenho uma ânsia enorme de aprender
- Porque está parada há meses?
- Os dramaturgos nunca pensam em escrever para mim.
- A Laura é um pouco
avessa a transformações. Por ex., o cabelo…
- Sou conservadora. Em toda
a minha filosofia de vida.
As rugas não me
assustam. Não me importo de dizer adeus ao teatro. Quem eu adoro na minha vida
é o meu filho mas gostaria de morrer a sorrir no palco ou no camarim.
- Que reforma vai ter à sua espera?
- Vai ser coisa pouca. Entreter-me-ei a ler. Gostava de ir à Lua.
- Desencanto e arrependimento?
- É isso… desencanto. Nunca me arrependi de amar tanto.
Notas
1 - A jornalista, Maria Augusta Silva, ficou impressionada com a imensa solidão e tristeza em que Laura Alves, outrora “Rainha do palco”, vivia.
Morreu 3 anos depois (1986) só, esquecida, sem trabalho, sem glória
2 – E que fez a geração na qual “se depositaram grandes esperanças” , como Jorge Sampaio e outros?
Imagens Google