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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

METAMORFOSES LOCAIS - 1


As diferentes transformações pelas quais o lugar em que nascemos passa no decorrer dos anos, quase fazem desaparecer a nossa identificação com ele

Hoje, um pouco ao sabor das recordações, apesar de o ter feito já inúmeras vezes, vou focar-me na Aldeia da minha infância, a aldeia  dos trabalhadores rurais cuja subsistência dependia do cultivo dos campos.

A prioridade agrícola dos solos e a fragmentação sucessiva das propriedades devido a partilhas por herança, limitavam a área disponível para a construção de habitação. Havia elevados níveis de pobreza e privação de bens da mais variada ordem. A economia era sustentada numa agricultura tradicional e numa indústria incipiente (lembro-me de, apenas, uma pequena fábrica de moagem).

Havia famílias muito numerosas e bastantes casas térreas demasiado pequenas (cozinha e um único compartimento), feitas de pedra sobre pedra sem liga de massa, com lareira sem chaminé (os fumos saim pelo telhado), uma única janela e porta sempre aberta. 
Também havia outras maiores ou mesmo grandes, de construção bem robusta



As crianças brincavam na rua (descalças, algumas) ao cordel,  à amarelinha, em cantigas de roda, ao jogo do lenço, a saltar à corda, ao pico-pico - sardanico, às pedrinhas, às corridas de saco, com bonecas de trapos, às casinhas e ao pião, à cabra-cega ou ao baloiço.
  
Ele, com capa, não anda
Sem capa não pode andar
Para andar, bota-se a capa
Tira-se a capa para andar
 \\
Cabra-cega, donde vens?
De Vizela (ou de Castela)
Que trazes na cesta?
Pão e canela.
Dás-me dela?
Não, que é para mim e para minha velha.
Zigue-te nela!” 

(Dizia a criança que estava ao lado, fingindo dar um beliscão na cabra-cega).




As “tias/ti” gostavam de ser visitadas e davam guloseimas.

Páscoas, Natais, Festa da Senhora do Monte e matanças, tinham características próprias de convívio, de solidariedade, alegria.

E nas "Janeiras" antes dos Reis, cantadas por grupos de porta em porta, enchiam-se os bolsos dos bibes (ou das calças) com nozes, figos secos, maçãs Bravo de Esmolfe já um pouco engelhadas, tremoços, rebuçados e até alguns tostões. Pobres ou menos pobres, juntavam as dádivas num repasto comum. 

Zé Afonso ao vivo - O Natal dos pobres


As 2 salas de aula da Escola Primária, uma para raparigas (com professora !) e outra para rapazes, (com professor !) enchiam-se todos os dias de manhã e de tarde, intercaladas pelo almoço.

No Mês de Maria, Maio, ouvidas as badaladas, corria-se para a Igreja a dedilhar o Rosário e ia-se à catequese para decorar o Catecismo.

Um dos programas frequentes considerado normal (pasme-se !) era o honroso convite para “levar o anjinho ao cemitério” no pequeno caixão forrado com tecido de seda branca - demonstração de que a morte dos pequeninos indicava júbilo pela chegada ao céu.

Quando se cozia o pão no forno comunitário, sobretudo no Inverno, o lugar aquecido servia de refúgio para conviver e  surrupiar os biscoitos de azeite que eram cozidos simultaneamente.



Muitas crianças eram pastores e ajudavam na azáfama agrícola depois das aulas.
E tantas outras coisas que ficam por dizer!

A vida era difícil mas não triste. Até ao dia em que, de repente, um surto de uma emigração clandestina descontrolada, organizada à sombra de redes de emigração também clandestinas, apoiadas nas rotas de contrabandistas, desencadeou o fenómeno migratório...

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