As diferentes
transformações pelas quais o lugar em que nascemos passa no decorrer dos anos, quase fazem desaparecer a nossa identificação com ele
Hoje, um pouco ao sabor das recordações, apesar de o ter feito já inúmeras vezes, vou focar-me na Aldeia da minha infância, a aldeia dos trabalhadores rurais cuja subsistência dependia do cultivo dos campos.
A prioridade agrícola dos solos e a fragmentação sucessiva das propriedades devido a partilhas por herança, limitavam a área disponível para a construção de habitação. Havia elevados níveis de pobreza e privação de bens da mais variada ordem. A economia era sustentada numa agricultura tradicional e numa indústria incipiente (lembro-me de, apenas, uma pequena fábrica de moagem).
Havia famílias muito numerosas e bastantes
casas térreas demasiado pequenas (cozinha e um único compartimento), feitas de pedra
sobre pedra sem liga de massa, com lareira sem chaminé (os fumos saim pelo telhado), uma única janela e porta sempre aberta.
Também havia outras maiores ou mesmo grandes, de construção bem robusta
As crianças brincavam na rua (descalças,
algumas) ao cordel, à amarelinha, em
cantigas de roda, ao jogo do lenço, a saltar à corda, ao pico-pico - sardanico, às pedrinhas, às corridas de saco, com bonecas de trapos, às casinhas e ao pião, à cabra-cega ou ao baloiço.
Ele, com capa, não anda
Sem capa não pode andar
Para andar, bota-se a capa
Tira-se a capa para andar
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“Cabra-cega, donde vens?
De Vizela (ou de Castela)
Que trazes na cesta?
Pão e canela.
Dás-me dela?
Não, que é para mim e para minha velha.
Zigue-te nela!”
(Dizia a criança que
estava ao lado, fingindo dar um beliscão na cabra-cega).
As “tias/ti” gostavam de ser visitadas e
davam guloseimas.
Páscoas, Natais, Festa da Senhora do Monte e matanças, tinham características próprias de convívio, de solidariedade, alegria.
E nas "Janeiras" antes
dos Reis, cantadas por grupos de porta em porta, enchiam-se os bolsos dos bibes (ou das calças) com nozes, figos secos, maçãs Bravo de Esmolfe já um pouco engelhadas, tremoços, rebuçados e até alguns tostões. Pobres ou menos pobres, juntavam as dádivas num repasto comum.
Zé Afonso ao vivo - O Natal dos pobres
As 2 salas de aula da Escola Primária, uma para raparigas
(com professora !) e outra para rapazes, (com professor !) enchiam-se todos os dias
de manhã e de tarde, intercaladas pelo almoço.
No Mês de Maria, Maio, ouvidas as badaladas, corria-se
para a Igreja a dedilhar o Rosário e ia-se à catequese para decorar o Catecismo.
Um dos programas frequentes considerado normal (pasme-se !) era o honroso convite para “levar o anjinho ao cemitério” no
pequeno caixão forrado com tecido de seda branca - demonstração de que a morte
dos pequeninos indicava júbilo pela chegada ao céu.
Quando se cozia o pão no forno comunitário, sobretudo no Inverno, o lugar aquecido servia de refúgio para conviver e surrupiar os biscoitos de azeite que eram cozidos simultaneamente.
Muitas crianças eram pastores e ajudavam na azáfama agrícola depois das aulas.
E tantas outras coisas que ficam por dizer!
A vida era difícil mas não triste. Até ao dia em que, de repente, um surto de uma emigração
clandestina descontrolada, organizada à sombra de redes de emigração também clandestinas, apoiadas nas rotas de contrabandistas, desencadeou o fenómeno migratório...
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