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sábado, 22 de junho de 2019

VAGABUNDO POR OPÇÃO


Há muito tempo que não ia à estação de comboios de Santa Apolónia. Mas naquele fim de tarde, a filha e duas netas da minha amiga Malú precisavam de  alguém que lhes levasse a tralha do FS até lá
- Vamos, meninas. Aqui o meu velhinho (um Fiat 127 900 “normal” quase tão velho como ela), vai ter que fazer um grande esforço, coitado!


Na verdade, já com uma embraiagem muito dura, um motor nervoso e a necessitar, talvez, de trocar as velas, parecia quase “morrer” antes de chegar à estação.

Então, as quatro foram sentar-se perto do local onde a carruagem iria parar e eu preferi ficar esperando do lado de fora.



Porem, ao procurar um lugar para me sentar, reparo que uns olhos de cor verde selvagem, tristes e longínquos, seguiam os meus movimentos.

- Chama-se Teresa - disse ele, sem hesitar
- Mas...
Ah! É o B.! Lembro-me muito bem, agora! Fazia parte, de vez em quando, do grupo das nossas vespertinas lisboetas (anos 60) pelos cafés Vá-Vá, Galeto, Monte Carlo, Monumental, Londres ou por casas espaçosas e disponíveis como a sua.


Tinha um talento invulgar para desenhar com lápis de carvão. 
- Sabe que ainda conservo os desenhos do Gago Coutinho e do Sacadura CabralTambém tocava piano (ainda toca?). Recordo-me que tentava adaptar uma melodia sua a "O vagabundo dos mares do sul" (uma grande aventura da humanidade!). Quantos anos!
- Foi uma década muito marcante! Muito mesmo.
- Jamais o imaginaria com esse seu novo perfil... 

Vestia roupas desbotadas, botas de caçador e um boné para todos os usos. Trazia uma enorme mochila e um saco com enlatados diversos, fruta, talvez sanduíches e vários pertences.

- Sim, vou-me embora. Sem destino. Deixei de ser escravo da minha identidade. Mudei para vagabundo. Só não serei exactamente um sem-abrigo porque distribuí o meu dinheiro aí por vários locais onde poderei levantá-lo se precisar.
Os meus Pais morreram, a Gi morreu e o meu cão também. Sinto-me doente. Depois de alguns episódios, cheguei à conclusão de que os amigos não eram amigos, os meus familiares só gostam deles próprios e os meus filhos quase não se lembram que eu existo. Ajudei muitas pessoas a evitar ou a sair de situações críticas; devem estar bem porque nunca mais as vi. 
Se, ao longo da caminhada, encontrar uma nómada como eu, seremos dois. Doutro modo, além de mim, apenas conto comigo. 

Conheci-o, pois, numa daquelas tertúlias bem divertidas por volta dos meus 17/18  anos. Era meu vizinho de rua, selecto, com muitos interesses e um pouco enigmático. 
Perguntou-me uma vez se queria ir ao réveillon em Sintra. 
Sei que não fui e que nunca mais o vi. 
Até àquela tarde na estação de Santa Apolónia.



- Até breve... portem-se bem... etc., etc.
O comboio chegou tão atrasado! Ainda dá para ir comer uma torradinha. Vamos, diz a Malú ao aproximar-se.

Então, o B. levantou-se lentamente, segurou a parca bagagem, esboçou um sorriso triste e lá foi caminhando, (para onde?) erguendo simultaneamente a cabeça como que para dizer: estou pronto para o desafio.


Quem é que, de vez em quando, cansado de problemas familiares e de perda de laços afectivos, não pensa separar-se dos seus grupos de referência, deixar tudo e ir por aí, de bolsos vazios e coração cheio, senhor da sua vida?

Auto excluir-se da sociedade, começar a andar na rua procurando outras amizades, talvez a nossa verdadeira família, é uma opção.  
Nómada por opção ou condição, é diferente do ficar sem tecto por vários outros motivos.



Mas coragem, é preciso!


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