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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A MATANÇA DO PORCO


Já viajei em muitos meios de transporte mas de ambulância foi a a primeira vez.


- Vai ter companhia, disse o jovem e simpático bombeiro. É só esperar uns 10 minutos.
- Costumam levar mais do que uma pessoa?
- Aqui dentro já chegaram a ir quatro, entre sentados e deitados.

A função do tipo de ambulância em questão devia ser, penso, apenas para situações não-urgentes porque não vi luzes rotativas nem ouvi sirenes.

- Senhor AA, vai ficar ao lado da senhora TT, que já entrou - explicou o mesmo bombeiro à medida que fazia avançar a maca para dentro, deslizando sobre uma rampa móvel.
- Boa noite, interpelei eu, para dar mote ao silencioso ancião. Qual é a sua rua?
- É onde vive a minha neta. Então vai à matança do porco? Precisamos das chouriças e das morcelas!
- Há muitos anos que não vou, desde o tempo em que os meus Pais a faziam.
- Então não vai ter as buxanas, os chouriços…
- Pois... 


MATANÇA!

E comecei a recordar...

Nos primeiros meses comprava-se o porco na feira para ser cevado durante o ano e morto pelo Natal.



De quem não fizesse matança dizia-se: ”Coitados, são tão pobres que nem mataram!”
O porco ocupava um lugar muito importante na alimentação familiar porque se come quase todo, desde as orelhas, sangue, rabo e tripas, tendo sido desde sempre um dos animais domésticos cuja criação e consumo maior relevo teve em todo o País.
A festa da matança, muito trabalhosa, era sobretudo de alegria entre participantes, familiares e amigos. Agora é quase um ato mecânico que dura algumas horas, é pago e feito para clientes mais idosos que não passam sem as suas chouriças, como o meu companheiro da ambulância.

Na casa dos meus Pais também havia a tradição/herança desse momento de convívio.
Logo bem cedo, pela manhã, começava o burburinho.
O porco mantinha-se em jejum desde o dia anterior para que os intestinos ficassem limpos.
Havia os homens (matador experiente e mais quatro ajudantes possantes) que faziam acompanhar o pão com enchidos do ano anterior, queijo e azeitonas de um copo de aguardente feita no alambique para “aquecer”; as mulheres que picavam cebolas e salsa para um alguidar vidrado com vinho, colorau, cominhos e pimentão a que iriam juntar o sangue do porco, gorduras e algumas carnes para fazer as morcelas; e nós, as crianças, ansiosas, sentadas à lareira, junto de uma enorme fogueira.

Depois, munidos de alguns feixes de lenha, os homens dirigiam-se à pocilga e atraiam o animal com qualquer alimento para o local de abate - um banco de madeira comprido e grosso, na rua da Carreira.

Aí, o bicho, ao abrir a boca para finalmente comer (maçaroca?) era enlaçado por uma corda que lhe apertava o focinho para não morder e, agarrado pelo rabo e orelhas, arrastado simultaneamente para cima do banco de madeira. Entretanto, as patas de trás passavam a cruzadas e eram amarradas à pata da frente que estava virada para baixo, para não espernear, momento em que, num instante, lhe era espetado com golpe certeiro, um grande facalhão no pescoço em direção ao coração (acto que nunca fui capaz de ver, encolhendo-me toda atras da janela da sala, balcão do bárbaro espectáculo).


O suíno, que antes já fazia um grande chinfrim, nessa altura guinchava ainda mais, acompanhando com espasmos violentos a sua luta final, agonia e morte rápidas, devido à enorme perda de sangue.
O sangue era recolhido por uma mulher para um alguidar de barro que tinha sido colocado antes, onde havia um preparado à base de sal e vinagre para evitar a coagulação e a ajuda de uma colher de pau.
A seguir, com um feixe de palha ou giestas a arder, desobstruíam os intestinos e com outro chamuscavam os pêlos do courato. 



Depois era esfregado, rapado e lavado com vários baldes de água morna.
E como esta operação se tornava minuciosa e demorada, a garrafa de aguardente e/ou geropiga ia circulando entre os homens, juntamente com algum sangue já cozido...


O matador cortava então uma parte junto aos tendões das patas de trás para, por meio de um chambaril, ser pendurado na loja, numa trave mestra da casa, onde ficava a escorrer.
Só depois é que o couro era aberto cuidadosamente, no sentido longitudinal, do rabo para a cabeça, evitando perfurar alguma tripa.
Sempre com cautela, ia cortando em profundidade até chegar às vísceras; tirava então o osso do peito, a língua, a fressura (pulmões), o coração e o fígado colocando tudo num alguidar de barro para, juntamente com sangue, se fazer a cacholada ou sarrabulho ou para outros fins culinários.
Seguiam-se as tripas, o buxo e a bexiga aos quais se tirava o véu, grande membrana rendilhada para, juntamente com uma das banhas ser frito para torresmos. Colocados num tabuleiro de madeira (o de levedar o pão) ou outro, as mulheres iam lavá-los na água corrente do rio Noémi.


E nós, sempre atrás delas para vermos o rio arrastar toda aquela sujidade.

O interior da carcaça era depois lavado com água para tirar as partes ensanguentadas e ficava a arrefecer, tapada com um pano, para o dia seguinte, dia do desmancho.

Enquanto o porco enxugava, os homens sentavam-se à mesa da sala com braseira por baixo, fumando provisórios e definitivos sem filtro, bebendo vinho e jogando às cartas até à hora da ceia (e depois dela) - um cozido com enchidos e carnes do ano anterior, batatas cozidas, uvas que tinham sido conservadas em pregos pendurados nas traves do tecto, maçãs bravo-de-esmolfe e castanhas assadas.

Nós as crianças, brincávamos na rua em grande algazarra, contando pelos dedos quantas matanças faltavam para terminar a romaria e comíamos pão com febras assadas nas brasas.



No dia seguinte, o animal era então cortado em presuntos, mãos, orelheiras, queixo, carne entremeada, lombos, focinheira, gorduras, febras, ossos, etc.

Da pele do lombo e da camada de gordura subjacente saía o toucinho para salgar. O resto da gordura era para a banha, tradicional na Beira Alta que depois de sofrer um processo de preservação, era vazada para uns grandes potes.

Toda a carne que não podia ser consumida nos primeiros dias, depois de convenientemente tratada, era conservada em sal numa arca de madeira (salgadeira) que se guardava na adega por ser o local mais fresco e que depois se ia comendo ao longo do ano, visto não haver aparelhos eletrodomésticos que conservassem os alimentos pelo frio.




As carnes para os enchidos ficavam uns dias temperadas em grandes alguidares donde iamos tirando algumas fêveras à socapa para comer, assadas, nas brasas da lareira.

As tripas enchiam-se com o auxilio de um pequeno funil de boca larga e chouriços, farinheiras, morcelas, bexiga, buxo e paios ficavam a curar pelo fumo.





A matança contribuía para o reforço dos laços de solidariedade entre familiares, vizinhos e amigos.


Por alegadas razões sanitárias e em nome de uma normalização imposta pela UE, a matança tradicional do porco foi ilegalizada e passou a punir-se quem a praticar, embora continue a fazer-se em vários lugares, ignorando a ASAE.


Imagens google

2 comentários:

  1. Bela descrição!
    Lembrar ainda,os alhos guizados, em grande quantidade ,que nesse dia eram também oferecidos aos matadores,depois da matança.

    No dia do desmancho,os amigos mais próximos eram comtemplados com belos pedaços frescos de carne.
    Bjinhos

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  2. Olá! Dos alhos não me lembro mas da oferta de carnes, sim. Cada família que fazia matança oferecia bons pedaços aos colaboradores. Por sua vez, quando eles matavam, também faziam o mesmo; e andava-se assim a comer boa carne durante uns tempos.
    jinho

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