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sábado, 5 de abril de 2014

O RIO NOÉMI (NO’AMI)


Noémi (do hebraico antigo no’ami) é uma figura do Antigo Testamento, da tribo de Benjamim, sogra de Rute, da linhagem de David e significa doçura, suavidade, graça, alegria, formosura.
A sua história é narrada no Livro de Rute.

Noémi é o nome do rio que, ao atravessar a minha aldeia, a caracteriza em duas partes distintas - o povo secular de um lado e a estação da idade do caminho-de-ferro, do outro.

Nasce na colina de Vale de Estrela (à cota 1010), uma freguesia  do concelho da Guarda, anteriormente chamada S. Silvestre de Porcas por ter sido local onde havia muitos porcos bravos e que, na carta de Dom Sancho I já data como fazendo parte dos Montes Hermínios.


É no Vale de Estrela que existe o célebre Padrão das Três Bacias, símbolo que representa caso único em termos hidrográficos - de lá flui água para os 3 maiores rios e cidades de Portugal. Na vertente Oeste nasce a ribeira do Coval que vai engrossar a ribeira da Corujeira, afluente do Mondego (Coimbra). Pelo lado Sul sai a ribeira da Vela que desagua no Zêzere, o grande afluente do Tejo (Lisboa). 
E da vertente Noroeste sai a ribeira das Cabras que entra no rio Noémi, afluente do Côa e que desagua no Douro (Porto).

PERCURSO (Localidades por onde passa e percurso Total)
Colaboração de Luís C. Castro

Tem aproximadamente 40 km (E-W) e no seu percurso passa pelas localidades de BarracãoGataVila GarciaVila FernandoAlbardo, Rochoso, CerdeiraMiuzela, PailoboMonte PerobolsoPorto de Ovelha (Jardo - rio Côa à cota 610).

Pontão, Monte e Jardo - foto Ilhardo /Rio Côa, foz do rio Noémi - foto J.M.D.M.Cardoso

Nasce com pouco caudal mas vai aumentando pela afluência de diversos ribeiros (Ordonho é o principal, na margem direita) e do Rio Diz na margem esquerda, zona da Gata.

Considerando as duas áreas geográficas distintas que atravessa - Serrana e Planalto - o rio apresenta fauna e flora com características diferentes à medida que avança. 
Predominam freixos, salgueiros, amieiros, patos, guarda-rios, galinhas-de-Água e peixes diversos.



Entre a Guarda e a estação do Noémi é acompanhado pela Linha de Caminho de Ferro da Beira Alta, proporcionando aos viajantes uma paisagem bucólica, sui-géneris, verde, repousante.

Desde os anos 80 que, segundo Márcio Fonseca, um jovem natural do Rochoso (www.cronicas-do-noeme.blogspot.com), o rio está poluído.
“Está a transformar-se num pântano , um  verdadeiro problema ambiental, devido à descarga de efluentes da fábrica COFICAB – Companhia de Fios e Cabos SA, localizada em Vale de Estrela, a poluentes do afluente rio Diz, à falta de cuidados da população na generalidade, à contaminação das margens pelo uso de pesticidas e não tratamento dos terrenos e á demissão das entidades competentes no cumprimento das suas responsabilidades.
Por outro lado, a areia tem sido desviada para construções dando origem, em certos lugares, a um rio que corre desordenadamente…

Rio Noémi poluído

Por iniciativa do mesmo Márcio Fonseca, foi feita uma petição exigindo que as entidades competentes - Câmara Municipal da Guarda e Administração da Região Hidrográfica do Norte - promovessem a suspensão imediata de todas as descargas poluentes e tomassem medidas de requalificação do ecossistema.
Entretanto, a Câmara, depois de ter anunciado que a resolução poderia passar pela construção de um colector ligando a estação de pré-tratamento de uma fábrica de lavagens de lãs localizada na zona da Gata, à Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) de S. Miguel, já aprovou o projecto da estação elevatória e decidiu abrir concurso para execução da obra, avaliada em cerca de 148 mil euros.
O equipamento, que vai ser construído na Quinta da Granja, nos arredores da cidade, encaminhará os efluentes da unidade de lavagem de lãs para a ETAR de S. Miguel, retirando-os do rio Noémi.

O rio Noémi fazia parte, nos meus anos de criança e de adolescente, da convivência, da familiaridade, da sustentação alimentar, da razão de ser da própria aldeia. 
Aliás, deve ter sido sempre assim desde que os povos celtas, romanos, árabes ou outros, se instalaram junto ao rio para partilhar, em comunidade, terrenos agrícolas, fornos e pastoreio, até às décadas do abandono do Portugal rural.

Na minha aldeia a “ribeira” era larga e na margem direita havia muita areia branca e limpa. 
Sobre ela poderia Sophia de Mello Breyner Andresen escrever também:

 “ Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
…,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade."

Do outro lado abundavam picotas/cegonhas, represas, noras lamuriantes a chiar, motores de rega, terras regadas e verdes ou o ferro gasto das charruas abrindo sulcos, o chilrear dos guarda-rios, as melancias, peras, amoras, sacos com batatas, palhaços espanta-pardais, amieiros, salgueiros, morugens, merendas à sombra densa das nogueiras e caminhos de terra batida com pessoas conversando ou simplesmente andando em ritmos diferentes…

Nas orlas de pisos irregulares, havia lajes inclinadas onde as mulheres, ajoelhadas em bancos de madeira, ensaboavam e esfregavam a roupa com sabão azul em barra e de punhos fechados. Ainda molhada e ensaboada, ficava estendida nas ervas a corar (branquear) ao sol. Depois secava ao ar livre, presa em cordas delgadas.
Algumas lavadeiras mais novas, em verso, cantavam ao desafio:


Daniel Ridgway Knight
“Fui lavar prà ribeira
Cheguei lá sem o sabão
Lavei a roupa com rosas
Ficou-me o cheiro na mão”

Na época da matança (Inverno!) lavavam-se as tripas na água corrente quase gelada e viravam-se com um pau de vime fino, o “pau de virar tripas”.

Tomar banho nas águas límpidas e cristalinas, era hábito dos rapazes que, ao verem aproximar-se pessoas, enrolavam a roupa debaixo do braço e corriam a esconder-se.

Poldras, pontão e ponte, serviam de ligação entre os dois lados da aldeia, o Povo e a Estação.
Ao contrário de muitas outras povoações que fazem a recuperação de moinhos e noras para perseverar as tradições e guardá-las na memória, as poldras que tantas vezes me afoitei a passar quase cobertas pela água das cheias de Inverno, foram substituídas por(?) e a velha e linda ponte românica passou a estar "adornada" com armações de barras metálicas paralelas. 

Que eu saiba, nunca fizeram falta em tantos séculos anteriores...  
«Os cursos de água eram normalmente atravessados por pontes flutuantes, constituídas por barcos amarrados entre si e ancorados em ambas as margens do rio. As pontes fixas em madeira eram suportadas por estacas onde assentava o tabuleiro igualmente de madeira.  As pontes em pedra eram um luxo só digno de estradas principais e a sua construção era feita em locais estreitos e rochosos» -José António Rebocho Esperança Pina

Dois aspectos da Ponte 

Com águas límpidas e oxigenadas mantidas pela corrente de ribeiros mais pequenos, abundavam bordalos e barbos durante quase todo o ano.
Para pescar, havia técnicas conforme a época e o caudal do rio. Nas zonas menos profundas do leito usava-se o galricho, uma pequena rede para peixe miúdo que permite a entrada e dificulta a saída. Por vezes as cobras de água também entravam e ficavam lá dentro, de barriga cheia.
Em Junho e Julho, quem tinha uma licença podia pescar à linha com canas de pesca. 
Era necessário encontrar o isco, quase sempre minhocas pequenas que existiam por baixo das pedras, à beira da água do rio.
Depois, procurava-se um lugar à sombra, permanecia-se imóvel, sem fazer qualquer barulho para não afugentar os peixes e esperava-se que mordessem...
Feita a pesca e já em casa, retiravam-se-lhes as vísceras, temperavam-se com sal e fritavam-se.
Era um dos mais gulosos pitéus!

                                                           Barbo - Bordalo                                                                

Lembro-me de pescas feitas pelos Nave (M., A. e H.) e, já muitos anos depois, em Agosto, quando a ribeira se reduzia a pequenos charcos junto dos muros das veigas, ainda se passavam alguns momentos de lazer a encontrar uns poucos…


Cerdeira - pescando

Hoje, dizem que não há qualquer forma de vida animal em grandes extensões do rio, embora se tenha verificado alguma capacidade regeneradora.

Noutros locais houve moinhos de água (Rochoso), passeios em barcos de borracha, fontanários e talvez outras poldras.

Além da ponte romana na Cerdeira sobre o rio Noémi, há muitos pontões em estado de grande abandono.



Antiga ponte - Vale de Estrela
Pontão entre Monteperobolso e Porto de Ovelha
Pontão Monteperobolso - Estação Noémi /António Monteiro.

Brincar, passear, lanchar, estudar, namorar, ouvir rãs a coxear, ver o comboio a passar e animais a pastar são, no conjunto, memórias de um modo de vida - partilha - minha aldeia - rio Noémi


2 comentários:

  1. Boa noite.
    Gostei do texto e do tema. Apenas uma correcção de pormenor: A ribeira das Cabras não desagua no Noémi, mas sim no Côa.
    É importante a divulgação das nossas terras pois só assim poderemos contribuir para que atentados como os que têm sido cometidos contra o rio Noémi, sejam conhecidos e eventualmente evitados.
    Convido a autora a visitar a coluna que alimento no blog " Capeiaarraiana" com o nome Do Côa ao Noemi, onde por diversas vezes tenho desenvolvido este tema da poluição no Noemi.
    José Fernandes (Pailobo)

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  2. Boa noite também (quase dia para mim!)
    E porque é realmente muito tarde, agora vou apenas agradecer a sua amabilidade, não só por me ter lido mas também por me ter esclarecido (e aos leitores). Ainda fui"espreitar" o seu blogue para o localizar e, num olhar rápido, vi que tem umas fotos excelentes.
    Estou solidária com o seu comentário. Trocaremos mais opiniões noutras ocasiões.
    Teresa (Faria Teixeira) C. Castro

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