Após um percurso de quase 800 Km em pouco mais de 24 horas, bastante cansados, retiram a bagagem do carro e entram em casa.
-
Olá! Estamos de volta.
Mais
agitado do que no dia anterior, quase não liga aos recém viageiros. Veste, em vez do habitual roupão branco do banho, roupa de sair à rua.
-
Que se passa? Vai sair? Nem comeu ...
Muito
baralhado e com enorme ansiedade, não responde directamente às perguntas e começa a narrar, com
alguma dispersão, assim do nada, cenas dum episódio que se tinha passado há momentos:
- Estiveram dois homens sentados aqui ao
lado, no sofá (pausa)
-
E o que disseram? Quem eram? Porque lhes abriu a porta? Etc., etc., etc.
- Eram dois homens muito bem vestidos; um
escrevia no computador e o outro parecia tirar fotos. Ou fazer projecções, não
sei. Havia mais um que andou pela casa
toda
-
Mas não faz mesmo nenhuma ideia de quem se trata? Insiste, a recém- chegada, já meio irritada e muito preocupada, procurando, simultaneamente, num
olhar rápido, vestígios de roubo.
-
Na, na, não...
Entretanto,
já da rua a caminho da sua casa, telefona o outro acompanhante de viagem:
-
Estão 2 carros - patrulha junto à porta do prédio. Fico aqui mais um pouco para ver no
que dá.
- Pronto, foram-se embora, primeiro um e depois o outro – diz, passados alguns minutos.
(O
intercomunicador tem estado sem funcionar
há uns dias. Será que foi isso que os demoveu?)
Quase de seguida, faz-se ouvir a campainha do andar.
Ao abrir a porta, surge um conjunto de três inusitadas
criaturas, quase hirtas perante a pessoa que não esperavam encontrar – a mais velha à frente, de gabardina e mãos nos
bolsos, tipo inspector Varatojo (talvez mais PIDE), uma outra, com pelo menos metade da idade, meio escondida logo atrás e a porteira, já fora do
horário de trabalho.
- Não me conhece? Pergunta então o “inspector”
- Sim, claro que conheço
- E este é o meu filho A.
- Sim, recordo-me
- Entrem. D. A. (porteira), entre também.
Todos juntos agora, olham-se sem fazer perguntas mas
com vontade de as fazer. Um parece cúmplice e baralhado, alguns mostram-se irritados, outros
perplexos e frustrados.
- Bem, diz o mais velho, após "estudo" do ambiente:
Uma vez que já estás acompanhado, vamos embora. Eu só cá
vim porque a Ç. me pediu.
Ah! Tinha que ser ela, a sempre intrometida, dominadora, irrepreensível, "virtuosa" e "solícita". Solteira, tem dedicado a sua longa vida (91 anos!) a perturbar os mais íntimos relacionamentos de convivência entre os desprevenidos que caíram no logro da tal proximidade.
Tal como nas perplexas obras de Kafka, a situação é burlesca,
absurda, de pesadelo, inconcebível, cheia de hipocrisia.
Sem comentários:
Enviar um comentário