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quarta-feira, 14 de março de 2012

HOMENAGEM A UM AMIGO

                                                                                                                                             
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. Fechei os olhos e dormi- Alberto Caeiro

O A. tinha vindo do Ultramar com tudo o que tinha de armas e bagagens - a mulher, duas filhas e um filho ainda crianças - e a possibilidade de trabalhar na profissão que exercia.  Conseguiu arranjar refúgio numa casa de 2 pequenas divisões.
Foi entretanto destacado para trabalhar como executivo único, na equipa de que eu fazia parte. E penso que, de acordo com a sua filosofia de vida, até não lhe deve ter desagradado a tarefa atribuída - gostava de ter o controlo de tudo o que acontecia em seu redor, de viver sem se preocupar muito com grandes enigmas, de não mostrar facilmente o que lhe ia na alma, de se dar bem com todo o género de pessoas, um pouco manipulador, sem dar espaço á monotonia, respeitador, apaixonado mas essencialmente virado para o companheirismo e relacionamentos.
O tipo de trabalho tinha um plano e objectivos bem definidos mas podia organizá-lo de acordo com as tarefas e a disponibilidade de cada dos grupos em que participava, de modo a apresentar os resultados só na data prevista. Adaptou-se sem dificuldade às várias entidades e pessoas envolvidas, assim como às normas pré-estabelecidas.  
Ia, portanto, tudo bem profissionalmente.
- Sabe que A. está internado no Hospital dos Capuchos?
  Foi-lhe diagnosticado um “neo” cerebral e vai ser operado.
- Mas assim, tão inesperado!

Passado um tempo, porque a operação pareceu não ter corrido mal, teve alta
A casa passou a ser mais pequena, quer pelo aparecimento da doença, quer porque os filhos iam crescendo e, de sexos diferentes, seria bom que existisse outra pequena divisão.
Como havia uma varandinha, lembrei-me de contactar a Cáritas para ajudar a fechá-la. Mas, arrastando-se no tempo,  não se interessou de todo…
Resolvi então expor o assunto a todas as pessoas com quem trabalhava e as que puderam e quiseram, contribuíram com um donativo. A varanda, depois de ter sido fechada, passou a ser o quarto do rapaz.

Eternamente grato com a solidariedade, tornou-se o melhor amigo em dedicação, afeição, estima - amizade feita de pedacinhos. Porque também eu, mais tarde, viria a experimentar desânimo e abatimento perante dois “neos” e ele nunca deixou de estar presente, puxando pela minha auto-estima e esperança.

Após muitos anos e depois de vários internamentos ao longo deles, deixou-nos.

Sei que no dia anterior quis dizer-me adeus para que eu nunca esquecesse:   "resistir sempre até deixar de ter força”
Mas já não era o tempo.


Ele e o meu filho “Luisinho”, como ele lhe chamava, eram também grandes amigos. Ainda pequeno, quando o jardim infantil fechava nas férias, ia algumas vezes comigo para o local de trabalho.
A., para compensar os efeitos das doenças, precisou sempre de caminhar bastante e aproveitava as grandes áreas que havia ali à volta para o fazer.
Um dia, fui encontrar os dois sentados num banco de pedra e o Luís, de 5 anos, a querer ficar descalço. Ao indagar o que se passava, verifiquei que os calcanhares estavam cheios de flictenas. 
Caminhou com ele o tempo todo “para A. não andar sempre sozinho”.

Alguns meses antes, houve também uns dias em que pintava os desenhos todos com cores muito escuras - preto, roxo, violeta, magenta, castanho, azul, verde - e ouvi alguém perguntar-lhe:

- Porque é que o Luizinho faz os desenhos tão escuros? Antes eram tão coloridos!
- Porque o Pai de A. morreu e ele está triste.

Dizia muitas vezes que eu devia ir ver a sua terra natal. 
E fui. Num cruzeiro, a caminho do Brasil. As fotos são de Cabo Verde.

 

Escrevo estas linhas para, muito singelamente, continuar a dar eco à enorme vontade de viver com que enfrentou os obstáculos.

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