“Um dia deu-me o sono como a
qualquer criança. Fechei os olhos e dormi”- Alberto Caeiro
O A. tinha vindo do Ultramar com
tudo o que tinha de armas e bagagens - a mulher, duas filhas e um filho ainda
crianças - e a possibilidade de trabalhar na profissão que exercia. Conseguiu
arranjar refúgio numa casa de 2 pequenas divisões.
Foi entretanto destacado para
trabalhar como executivo único, na equipa de que eu fazia parte. E penso que,
de acordo com a sua filosofia de vida, até não lhe deve ter desagradado a
tarefa atribuída - gostava de ter o controlo de tudo o que acontecia em seu
redor, de viver sem se preocupar muito com grandes enigmas, de não mostrar
facilmente o que lhe ia na alma, de se dar bem com todo o género de pessoas, um
pouco manipulador, sem dar espaço á monotonia, respeitador, apaixonado mas
essencialmente virado para o companheirismo e relacionamentos.
O tipo de trabalho tinha um
plano e objectivos bem definidos mas podia organizá-lo de acordo com as tarefas
e a disponibilidade de cada dos grupos em que participava, de modo a apresentar
os resultados só na data prevista. Adaptou-se sem dificuldade às várias
entidades e pessoas envolvidas, assim como às normas pré-estabelecidas.
Ia, portanto, tudo bem
profissionalmente.
- Sabe que A. está internado no
Hospital dos Capuchos?
Foi-lhe diagnosticado um
“neo” cerebral e vai ser operado.
- Mas assim, tão inesperado!
Passado um tempo, porque a operação pareceu não ter
corrido mal, teve alta
A casa passou a ser mais pequena, quer pelo aparecimento
da doença, quer porque os filhos iam crescendo e, de sexos diferentes, seria bom
que existisse outra pequena divisão.
Como havia uma varandinha, lembrei-me de contactar a
Cáritas para ajudar a fechá-la. Mas, arrastando-se no tempo, não se
interessou de todo…
Resolvi então expor o assunto a todas as pessoas com quem
trabalhava e as que puderam e quiseram, contribuíram com um donativo. A
varanda, depois de ter sido fechada, passou a ser o quarto do rapaz.
Eternamente grato com a solidariedade, tornou-se o melhor
amigo em dedicação, afeição, estima - amizade feita de pedacinhos. Porque
também eu, mais tarde, viria a experimentar desânimo e abatimento perante dois
“neos” e ele nunca deixou de estar presente, puxando pela minha auto-estima e
esperança.
Após muitos anos e depois de vários internamentos ao
longo deles, deixou-nos.
Sei que no dia anterior quis dizer-me adeus para que eu
nunca esquecesse: "resistir sempre até deixar de ter força”.
Mas já
não era o tempo.
Ele e o meu filho “Luisinho”, como ele lhe chamava, eram
também grandes amigos. Ainda pequeno, quando o jardim infantil fechava nas
férias, ia algumas vezes comigo para o local de trabalho.
A., para compensar os efeitos das doenças, precisou
sempre de caminhar bastante e aproveitava as grandes áreas que havia ali à
volta para o fazer.
Um dia, fui encontrar os dois sentados num banco de pedra
e o Luís, de 5 anos, a querer ficar descalço. Ao indagar o que se passava,
verifiquei que os calcanhares estavam cheios de flictenas.
Caminhou com ele o tempo todo “para A. não andar sempre
sozinho”.
Alguns meses antes, houve também uns dias em que pintava os desenhos todos com
cores muito escuras - preto, roxo, violeta, magenta, castanho, azul, verde - e
ouvi alguém perguntar-lhe:
- Porque é que o Luizinho faz os desenhos tão
escuros? Antes eram tão coloridos!
- Porque o Pai de A. morreu e ele está triste.
Dizia muitas vezes que eu devia ir ver a sua terra natal.
Escrevo estas linhas para, muito singelamente, continuar a dar eco à enorme vontade de viver com que enfrentou os obstáculos.
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