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quinta-feira, 6 de setembro de 2012

FALAR DO PAI






Talvez porque o verbo dizer sempre tenha sido substituído pela expressão demonstrar simplesmente, sinto alguma dificuldade em falar do PAI.

Antes dos quatro anos de idade, para além das fotos, não conservo uma recordação consciente muito nítida sobre a sua imagem. Devo ter destacado a atenção para as minhas duas irmãs que, entretanto, comigo passaram a ocupar esse espaço de tempo, num esquema de acontecimentos familiares.
Mas, ultrapassada essa lacuna pela ausência de pistas na ajuda da capacidade de recuperação de alguma memória, os detalhes particulares, fragmentados, de evocação e reconhecimento, são imensos a partir daí.

A saudade - palavra inerente apenas ao conhecimento forjado de galegos e portugueses - causada pela ausência, tem-se mantido sempre ao longo dos anos com mais ou menos intensidade.

O Pai não foi doutor, nem engenheiro, nem advogado, nem andou em nenhuma Faculdade porque o meu Avô impôs-lhe a obrigação da responsabilidade em continuar a manter a “trave” da casa de lavoura existente. Muito contrariado mas sensível ao respeito devido (naquele tempo…), por lá ficou, sem qualquer alternativa.

Depois de ter feito a Primária, frequentou a escola nocturna para adultos na Escola Regional Dr. José Dinis da Fonseca, até ser transferida para o Outeiro de S. Miguel.



Década de 30 - grupo de alunos

Ficou sem título académico mas não foi essa omissão que o impediu de lhe terem sido sempre concedidas as atribuições mais destacadas na Freguesia, entre as quais a nomeação para representante do Presidente da Câmara Municipal (Regedor), com competências claras e definidas na Regulamentação dos Regedores de 1940, sem qualquer remuneração:

«Cumprir e fazer cumprir as leis, deliberações, decretos municipais e os regulamentos da polícia; levantar autos de transgressões e auxiliar as autoridades polícias e judiciais; agir de modo a garantir a ordem, segurança e tranquilidades públicas; auxiliar as autoridades sanitárias e garantir o cumprimento dos regulamentos funerários; mobilizar as populações para casos de incêndio e cumprir as ordens e instruções emitidas pelo Presidente da República.»

A “Prisão” para os desordeiros em festas, feiras e outros ajuntamentos, ciganos burlões, etc., era no interior da Torre do Relógio… com a criançada como plateia.
Naqueles anos não me lembro de ter visto qualquer incêndio por perto, apesar do calor abrasador de todos os Verões!
Recolhia os dados para o censo da população, afixava decretos governamentais (editais?), notificava os rapazes para o serviço militar e era chamado com frequência ao tribunal do Concelho, considerando isso um grande incómodo e uma grande complicação, quer pela dificuldade das viagens, quer pela morosidade dos Processos (penso que não havia táxis; apenas a “carreira” que fazia a viagem de ida e volta uma vez por dia ou alguma boleia casual de amigos).
O dia de votar era outro divertimento, apesar de rápido e só para homens e viúvas, no edifício da minha Escola Primária.
Recordo também a presença da Guarda-Republicana que patrulhava periodicamente a Freguesia e o sururu que se levantava entre nós crianças, e não só.

Fez 147 anos o jornal Diário de Notícias e de que o Pai era o correspondente oficial, sob a direcção de Augusto de Castro, àquela data. Apesar da censura, era um jornal de muita tiragem; a redacção incluía não só os colaboradores mas também a generalidade dos cidadãos, como neste caso. Era lido por todas as inteligências - elites, pessoas comuns, novos e velhos - devido à variedade de conteúdos sobre assuntos de Portugal e do estrangeiro, e aos anúncios.
O preço manteve-se uma eternidade a 80 centavos; foi nele que aos cinco anos aprendi a ler; após ter sido lido pelas pessoas interessadas, transformava-se no forro de muitas paredes interiores de pedras sem liga, ou na acendalha de várias lareiras.

E. sem ser antes nem depois mas sempre, há o Pai e as ceifas, a malha, a matança, as colheitas, os regadios, os cães de guarda, as vindimas, os mercados, o Dia do Senhor, os amigos e os inimigos, a Páscoa e o Natal, as viagens à Guarda para comprar uns sapatos melhores ou uma roupa diferente ou um chapéu de feltro sempre na mesma chapelaria, os bovinos, suínos e asininos, os dias de chuva ou a falta dela, os Verões de escaldar, a conversa.

Alonguei-me propositadamente sobre as duas primeiras ocupações por achar que  elas tiveram grande influência no empirismo de deduções lógicas das experiências práticas num discurso logicamente perfeito (em locais como os tribunais), sem querer contudo cometer a injustiça de lhe tirar o mérito (que também o tinha) em obter o conhecimento da verdade através da razão.


Salvador Dali - Representative rose

Quando mais novo (morreu aos 90 anos) era um homem brilhante, sábio, espontâneo, orvalho campestre, poeta natural, trabalhador, honesto, singular, inconfundível, inteligente, magnânimo nos gestos mais simples, cheio de luz própria, crente, sonhador/saudosista, "um mãos-largas".
Nos defeitos, não se lhe ajusta a imagem de santo, difícil em admitir ideias diferentes, procurando andar por caminhos correctos nem sempre conseguidos, pouco rigoroso nas obrigações familiares diárias, a mesma facilidade em fazer amigos/inimigos, demasiado decidido em correr riscos baseado na sua enorme boa-fé.

Tinha olhos esverdeados, levantava-se pela madrugada, sentia prazer em contar histórias, era um mestre por excelência em tudo o que transmitia (com ele aprendi a fazer descrições, outros adquiriram conhecimentos sobre as artes do quotidiano), adorava ver a família reunida, procurava estar à frente do seu tempo ajudando e deixando explorar todas as oportunidades de futuro para os filhos.

 “Chorou” quando saí de casa mas eu voltava sempre para o abraçar; e ele, quando saiu, nunca mais voltou.

  

Um ano antes de partir, escreveu ao correr da pena numa pequena mesa que lhe servia de apoio, para o neto Luís (e para todos, em nome dele):


"Este que foi vosso Avô
Vosso Avô já não é.
Fui alguém e já não sou
Mais que ambulante em pé.

A vós queridos netos,
Tudo o que tenho dou
Com carinho, mil afectos
É o que tem vosso Avô"

2 comentários:

  1. gostei muito de ler sobre o Avô, de vê-lo pelos teus olhos!
    muitos beijinhos!

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  2. Oi,Joana
    Sim linda, eu tenho as recordações do Pai jovem e do Pai velho. Tu só as tens de um Avô velho...
    Beijocas

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